terça-feira, 23 de dezembro de 2008
domingo, 21 de dezembro de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
"Depois, como o amor vive de fome e morre de saciedade, começará a notar que a usa deusa afinal não é tão bonita como você supunha. Verificará que o tornozelo é tanto ou quanto “sopeiral” e lhe faltam cinco pestanas na pálpebra do olho esquerdo. O senhor, que a considera agora razoavelmente inteligente, acha-la- á amiúde razoavelmente estúpida, porque agora é sempre da opinião dela e hão-de chegar depois momentos em que deseje, sem o conseguir, que ela seja da sua. No que respeita a epístolas notará que nunca há moços pelas esquinas, nem selos na tabacaria mais próxima, que a letra dela é muito mais inglesa do que é permitido pelas leis em vigor, que o seu bem oscila demasiadamente entre a ortografia antiga e a moderna e mantém com a sintaxe de construção relações superficiais e de simples cumprimento. Depois virão considerações sobre os ciúmes que a dama não deixará de manifestar, quanto mais não seja senão para o arreliar, sobre os que ela lhe inspirara na doce esperança de o prender melhor na sua teia" (...)
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Ariadne e Teseu
Quem dera ser
Ariadne
e tu
Teseu!
Esperaria que te perdesses
pelo labirinto da vida;
o fio do novelo mágico
preso aos dedos nossos.
Tu te perderias,
nas esquinas, curvas e contra-curvas,
mas sempre encontrarias a saída.
Enrolas o fio de novelo,
e no fim,
aqui,
eu.
Ariadne
e tu
Teseu!
Esperaria que te perdesses
pelo labirinto da vida;
o fio do novelo mágico
preso aos dedos nossos.
Tu te perderias,
nas esquinas, curvas e contra-curvas,
mas sempre encontrarias a saída.
Enrolas o fio de novelo,
e no fim,
aqui,
eu.
terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Um poema possível
ARIANE
Agora falarei dos olhos de Ariane.
Falarei dos teus olhos, pois de Ariane
só talvez haja memória
entre as pernas de Teseu.
De Ariane ou não, os olhos são azuis.
Azuis de um azul muito frágil,
como se ao fazer a cor uma criança
tivesse calculado mal a água.
É um azul diluído, o azul dos teus olhos,
diluído em duas ou três lágrimas -
uma delas minha, pelo menos uma,
e as outras tuas, as outras de Ariane.
Falarei destes olhos. Os de Ariane,
deles deixarei que seja Teseu a falar.
Falarei desse azul que não vi em Creta,
pois passei a infância numa terra sem mar,
falarei desse azul que não vi em Naxos,
mas vi em Delfos onde, entre colunas,
passava os dias divinamente a fornicar,
indiferente ao oráculo de Apolo.
De resto, que deus grego não me aprovaria?
Que outra coisa se pode fazer na Grécia? (...)
Agora falarei dos olhos gregos de Ariane,
que não são de Ariane nem são gregos,
desses olhos que se fossem música
seriam a música de água dos oboés,
falarei apenas dos olhos do meu amor,
desses olhos de um azul tão azul
que são mesmo o azul dos olhos de Ariane.
(Eugénio de Andrade)
sábado, 13 de dezembro de 2008
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
"Give me the words that tell me everything…"
Acende outro cigarro. Um atrás do outro. Senta-se, levanta-se, tosse, cospe.
Anda de um lado para o outro, as pessoas em redor olham-no, desconfiadas (já não há desgostos de amor).
Ele nem as vê. Só pensa nela. Sente saudades do tempo em que se riam um com o outro, se riam dos outros, se riam um do outro. Sentia falta da cumplicidade, do amor. Amava-a?
Não conseguia definir esse sentimento que tinha por ela…
Neste momento sentia-se egoísta e culpado de ter ajudado ao afastamento mútuo.
Depois de ter pensado no futuro, apercebeu-se que não se imaginava a viver com mais ninguém a não ser ela.
Recorda-se da naturalidade dela, em esgueirar-se por trás dele para terminar algo que ele não acabara…
Concluiu que ambos se amavam, mas que se tinham perdido um do outro, a monotonia, o cansaço do trabalho, as compras, as contas…
Quando chegar a casa, conversa com ela, pede desculpa. Começam tudo de novo, tudo vai ficar bem. Agora ele tem a certeza do que quer.
Segura na mala de viagem como quem segura a vida e regressa ao carro.
Parou para lhe comprar rosas. No caminho pensava no empadão que ela guardara. Não tinha muita fome, mas para a agradar ia comer o jantar que ela guardara com carinho…
As rosas cumpriram o seu destino.
Anda de um lado para o outro, as pessoas em redor olham-no, desconfiadas (já não há desgostos de amor).
Ele nem as vê. Só pensa nela. Sente saudades do tempo em que se riam um com o outro, se riam dos outros, se riam um do outro. Sentia falta da cumplicidade, do amor. Amava-a?
Não conseguia definir esse sentimento que tinha por ela…
Neste momento sentia-se egoísta e culpado de ter ajudado ao afastamento mútuo.
Depois de ter pensado no futuro, apercebeu-se que não se imaginava a viver com mais ninguém a não ser ela.
Recorda-se da naturalidade dela, em esgueirar-se por trás dele para terminar algo que ele não acabara…
Concluiu que ambos se amavam, mas que se tinham perdido um do outro, a monotonia, o cansaço do trabalho, as compras, as contas…
Quando chegar a casa, conversa com ela, pede desculpa. Começam tudo de novo, tudo vai ficar bem. Agora ele tem a certeza do que quer.
Segura na mala de viagem como quem segura a vida e regressa ao carro.
Parou para lhe comprar rosas. No caminho pensava no empadão que ela guardara. Não tinha muita fome, mas para a agradar ia comer o jantar que ela guardara com carinho…
As rosas cumpriram o seu destino.
domingo, 7 de dezembro de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
"Mas vamos agora à página Dever. Aqui amigo Calixto e louro, é que são elas, como dizia Napoleão ao ver surgir Blucher em Waterloo.
Passarei em claro os dois primeiros meses, porque nesses o meu amigo não terá mãos a medir para escriturar a página Haver e nem pelo espírito lhe passará a existência da outra.
Mas entremos no terceiro mês, em que você começa a sentir a tentação de pôr a sua escrita a limpo.
Em primeiro lugar, o meu caro Calixto agora é livre. Vai onde quer, levanta-se à hora que lhe apetecer, veste-se como o seu gosto indica, tem os seus hábitos certos, goza enfim dum bem altamente apreciável e que, como todos os bens, de resto, só apreciamos quando o perdemos: a liberdade. Há-de reparar, depois, que a sua vida mudou completamente. No dia em que tiver afazeres, forçoso será encontrar-se com ela. Quando lhe apetecer ficar à noite em casa, terá de ir ao teatro ou a u cinema odoro e insípido. Passará manhãs de sol inteiras em casa à espera de uma carta e tardes de chuva intermináveis à cuca de da madame numa esquina. Deverá abandonar certo colete de fantasia que o senhor estima como pessoa de família, porque ela o declara saloio e ridículo. Em compensação nem para se deitar poderá tirar uma gravata horrível que ela acha adorável e de que lhe fez presente. Descuidará dos seus amigos e, provavelmente, será levado a cortar relações com os melhores por serem da embirração da sua bem -amada.
Em resumo: dentro da tina, à mesa, quando fizer a barba ou andar à procura da risca do cabelo, de manhã, à tarde, à noite, terá sempre a preocupação que ela existe e isso é tremendo, meu prezado amigo.
Passarei em claro os dois primeiros meses, porque nesses o meu amigo não terá mãos a medir para escriturar a página Haver e nem pelo espírito lhe passará a existência da outra.
Mas entremos no terceiro mês, em que você começa a sentir a tentação de pôr a sua escrita a limpo.
Em primeiro lugar, o meu caro Calixto agora é livre. Vai onde quer, levanta-se à hora que lhe apetecer, veste-se como o seu gosto indica, tem os seus hábitos certos, goza enfim dum bem altamente apreciável e que, como todos os bens, de resto, só apreciamos quando o perdemos: a liberdade. Há-de reparar, depois, que a sua vida mudou completamente. No dia em que tiver afazeres, forçoso será encontrar-se com ela. Quando lhe apetecer ficar à noite em casa, terá de ir ao teatro ou a u cinema odoro e insípido. Passará manhãs de sol inteiras em casa à espera de uma carta e tardes de chuva intermináveis à cuca de da madame numa esquina. Deverá abandonar certo colete de fantasia que o senhor estima como pessoa de família, porque ela o declara saloio e ridículo. Em compensação nem para se deitar poderá tirar uma gravata horrível que ela acha adorável e de que lhe fez presente. Descuidará dos seus amigos e, provavelmente, será levado a cortar relações com os melhores por serem da embirração da sua bem -amada.
Em resumo: dentro da tina, à mesa, quando fizer a barba ou andar à procura da risca do cabelo, de manhã, à tarde, à noite, terá sempre a preocupação que ela existe e isso é tremendo, meu prezado amigo.
sábado, 6 de dezembro de 2008
"Give me the words that tell me nothing…"
Sentada no chão, ao canto da sala, respira lentamente, tenta não chorar.
Lembra-se ainda do primeiro beijo e de como tudo parecia maravilhoso. Ama-o. A canção "It´s getting better all the time" parece escarnecer dela. Ao longo do tempo o amor pelo outro construiu barreiras invisíveis entre ambos.
Olha as estrelas através da janela e pergunta-se o que fez de errado. A culpa, sempre a culpa. A mea culpa.
Já passa da hora de jantar e ele não aparece. O empadão continua no forno, à espera de ser aquecido, tal como o coração dela.
Lembra-se do que sentiu quando conversaram a primeira vez e recorda os seus gestos habituais.
A torneira da casa de banho continua a pingar, irritando-a, mas nem essa irritação a obriga a mexer-se.
Pensa no que há-de fazer, "as palavras já estão gastas"; o mais acertado seria ir-se embora. Mas para ela seria tão doloroso. Muito mais doloroso do que aquilo porque passava há três anos. Por que é que o ser humano é tão comodista?! Dá dó vê-lo acomodar-se às situações mais insólitas.
Amava-o ou tinha medo de começar uma vida nova? Sozinha…Sempre tivera medo de mudanças e o medo de ficar sozinha aterrorizava-a.
Não conteve mais a tortura da incapacidade e chorou.
O telefone toca: era ele. A voz rouca e baixa. Havia interrupções na linha telefónica. Ele diz que está no aeroporto. Que está confuso. Ela pergunta-lhe, infantilmente, se ele vem jantar. Limpa as lágrimas e agradece ele ter telefonado. Desligam.
O silêncio parece engoli-la. Vagueia pela sala e tudo parece um sonho enevoado, daqueles em que apenas pensamos que aquela pessoa somos nós, mas podemos não ser.
Acende as luzes dos candeeiros. Contempla as fotografias, onde todos parecem estar felizes, e olhando não reconhece ninguém.
Depois de alguns momentos, entra na cozinha e deita o empadão fora. Arruma toda a louça, maquinalmente, perfeitamente.
Avança pelo quarto, abre as suas malas. Senta-se na borda da cama e sente um arrepio. A cama está gelada e emana um frio de morte. Nunca quereria dormir naquela cama enorme, sozinha.
Levanta-se e senta-se na secretária de pinho, arranja papel e caneta, escreve a data e, de repente, sentiu-se estúpida. Ela não tinha que dizer nada a ninguém. Não havia ninguém.
Abre a janela, espreita para fora, põe-se de pé e sai por ela, como se apanhasse um comboio.
Lembra-se ainda do primeiro beijo e de como tudo parecia maravilhoso. Ama-o. A canção "It´s getting better all the time" parece escarnecer dela. Ao longo do tempo o amor pelo outro construiu barreiras invisíveis entre ambos.
Olha as estrelas através da janela e pergunta-se o que fez de errado. A culpa, sempre a culpa. A mea culpa.
Já passa da hora de jantar e ele não aparece. O empadão continua no forno, à espera de ser aquecido, tal como o coração dela.
Lembra-se do que sentiu quando conversaram a primeira vez e recorda os seus gestos habituais.
A torneira da casa de banho continua a pingar, irritando-a, mas nem essa irritação a obriga a mexer-se.
Pensa no que há-de fazer, "as palavras já estão gastas"; o mais acertado seria ir-se embora. Mas para ela seria tão doloroso. Muito mais doloroso do que aquilo porque passava há três anos. Por que é que o ser humano é tão comodista?! Dá dó vê-lo acomodar-se às situações mais insólitas.
Amava-o ou tinha medo de começar uma vida nova? Sozinha…Sempre tivera medo de mudanças e o medo de ficar sozinha aterrorizava-a.
Não conteve mais a tortura da incapacidade e chorou.
O telefone toca: era ele. A voz rouca e baixa. Havia interrupções na linha telefónica. Ele diz que está no aeroporto. Que está confuso. Ela pergunta-lhe, infantilmente, se ele vem jantar. Limpa as lágrimas e agradece ele ter telefonado. Desligam.
O silêncio parece engoli-la. Vagueia pela sala e tudo parece um sonho enevoado, daqueles em que apenas pensamos que aquela pessoa somos nós, mas podemos não ser.
Acende as luzes dos candeeiros. Contempla as fotografias, onde todos parecem estar felizes, e olhando não reconhece ninguém.
Depois de alguns momentos, entra na cozinha e deita o empadão fora. Arruma toda a louça, maquinalmente, perfeitamente.
Avança pelo quarto, abre as suas malas. Senta-se na borda da cama e sente um arrepio. A cama está gelada e emana um frio de morte. Nunca quereria dormir naquela cama enorme, sozinha.
Levanta-se e senta-se na secretária de pinho, arranja papel e caneta, escreve a data e, de repente, sentiu-se estúpida. Ela não tinha que dizer nada a ninguém. Não havia ninguém.
Abre a janela, espreita para fora, põe-se de pé e sai por ela, como se apanhasse um comboio.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
A mulher japonesa e os seus mil encantos
"Como mãe, o sentimento da maternidade absorve-a inteira; não se compreende maior dedicação, maiores desvelos; é um instinto de ave, de rola passando os dias imóvel, dando calor à prole. O bebé é rei neste país. Ocupando-se metade do povo na indústria das quinquilharias, dos bonecos, dos bolos, do completo tesouro das crianças, e a outra metade, pelo menos na tarefa de fazê-las, parece indiscutível que a grande preocupação japonesa seja o bebé; o ar despótico do pequenino pimpão , todo em galas de sedas e enfeites, mesmo entre a gente pobre fala por si.
Nunca vi uma mamã bater no filho, ralhar com ele; os dedos finos só se estendem em afagos; e as bocas, junto das boquinhas, deliciam-se no beijo indígena, sorvendo os hálitos; é ele que ralha, que exige, que ordena, e que é obedecido. Os peitos brancos, ligeiramente pendentes, de cabra criadeira, oferecem-se solícitos, não sei por quantos anos; por fim, o leite deixa de ser um alimento, é uma carícia, um doce hábito, um tributo humildoso, que o garoto vem reclamar em grandes berros, indo depois saciar-se em frutos e pastéis. Numa carruagem de caminho-de- ferro, onde melhor se apanha em flagrante o viver íntimo, não é ocioso observar como a mãe vai julgando seu o espaço: aqui senta-se ela, defronte o seu menino, sobre fofas colchas e almofadas trazidas para o caso: segue-se o estendal dos embrulhos com bolos, com maçãs, com cavalos de pau, com cornetas de latão; e é um nunca acabar de passeios ora dando o peito sem recatos, ora conchegando as roupinhas, ora inventando diversões; e que os vizinhos se arranjem como possam, uns de encontro aos outros, conquanto que sobre campo para o rei, a quem todos devem obediência, o rei que além se vai rojando pelos bancos e molhando as fraldas..."
Wenceslau de Moraes, Antologia
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
sábado, 29 de novembro de 2008
O que faz uma mulher?
Um cabelo longo,
ligeiramente ondulado nas pontas,
de cor fulva ou preta,
uns olhos de amêndoa,
grandes e maldosos,
nem importa a cor.
Um nariz pequenino
E arrebitado,
Uma boca carnuda
Pintada de carmim.
Uns seios decididos
e cheios quanto baste.
Uma curva vertiginosa
Até à anca opulenta.
Uma púbis macia,
E pernas suaves…
Eis o que faz uma mulher!
ligeiramente ondulado nas pontas,
de cor fulva ou preta,
uns olhos de amêndoa,
grandes e maldosos,
nem importa a cor.
Um nariz pequenino
E arrebitado,
Uma boca carnuda
Pintada de carmim.
Uns seios decididos
e cheios quanto baste.
Uma curva vertiginosa
Até à anca opulenta.
Uma púbis macia,
E pernas suaves…
Eis o que faz uma mulher!
domingo, 23 de novembro de 2008
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
O pé japonês
“Falemos dos pés agora. O assunto é ainda mais interessante, pelo contraste que oferece com esses outros membros, atrofiados ou repelentes, da gente ocidental, que pés também se denominam. Se a mão japonesa é um enlevo, o pé é outro enlevo. (…)
Agora, naturalmente, vamos pousar o olhar sobre os pés da musumé; pousar é o termo próprio, como uma borboleta amorosa vai pousar sobre a corola de uma açucena. Naturalmente, pelos mimos do sexo, o pé da japonesa é mais gentil que o pé do nipónico; e quando a japonesa vive uma existência suficientemente recatada para poder esquivar-se aos poderes das intempéries (…), o seu pé nu, sobre a esteira doméstica e assente sobre a gheta gentil se sai para a rua, apresenta de ordinário uma extrema graciosidade, que qualquer explicação verbal não lograria definir. Para o estrangeiro recém-chegado, esta ponta de nudez inesperada, que surde da fímbria da seda do quimono, é encantadora; os gestos deste pé, as curvas ocasionais em que se requebra, a sua verdadeira mímica não só encantam, mas assombram, como uma intensíssima revelação estética, de que a Europa nem sequer nos oferece um vislumbre fugidio…por causa dos mofinos sapateiros!...”
Wenceslau de Moraes, in Antologia
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
O CANTO DE PENÉLOPE
sábado, 15 de novembro de 2008
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
A mão e o pé japoneses - parte I
"Pousada é um deleite. Em movimento, na mímica trivial dos seus misteres, é uma pasmosa revelação de estética asiática, na sua feição mais transcendente, que escraviza os nossos olhos, e quantas vezes os nossos corações!...Segundo a clássica e lendária compreensão dos fenómenos psíquicos desta gente, indica-se que a coragem reside na barriga, a paixão no coração, o raciocínio na cabeça; e admite-se que, por uma rigorosa disciplina educativa, a alma nipónica pode localizar-se de preferência em qualquer destes centros que indiquei.
Sendo assim e convindo que a mulher japonesa seja particularmente educada para o enlevo do lar, para o arranjo das pequeninas coisas domésticas, para o carinho da família, eu quero que a alma dela resida nas pontas dos seus dedos. Nisto creio;e asseguro que não há maior encanto, debaixo de um ponto de vista estético, do que seguir com o olhar o gesto meigo da filha do Nippon, nas suas ocupações comezinhas, preparando o chá, penteando-se, colhendo flores ou insectos, tocando no shamicen, afagando um filho ou um irmão... - Um tal encanto tende a transformar-se em culto; e chegamos até a invejar os mortos, por cuja bem-aventurança, junto do altar dos antepassados, quotidianamente aquela mão se eleva em prece fervorosa."
in Antologia, Wenceslau de Moraes
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
Algazel fragmentado
Vejo-te
Em cada rosto que passa.
Aqui
uns cabelos finos,
ali
uns olhos tristes, cinzentos
"como duas violetas debaixo de água",
Uns lábios grossos,
Dedos longos…
Se pudesse roubar cada pedaço,
Ter-te-ia junto a mim,
Por inteiro.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
“Mais, deverá acrescentar a estúpida vaidade de poder contar uma história aos seus botões e aos seus catorze amigos mais íntimos, o perigo dos vossos encontros que é sempre um gozosinho ao princípio, o mistério de que deverão cercá-los, as cartas apaixonadas, o inevitável retrato, as olhadelas no teatro ou em passeio, etc.
Poderia apontar-lhe mais algumas satisfações do seu amor-próprio. Juntando-as todas podemos inscrever na tal coluna outros 100.000. Soma total no primeiro mês: 300.000.”
Poderia apontar-lhe mais algumas satisfações do seu amor-próprio. Juntando-as todas podemos inscrever na tal coluna outros 100.000. Soma total no primeiro mês: 300.000.”
sábado, 8 de novembro de 2008
E porque não um poema?!
Valsinha, Vinicius de Moraes
Um dia ele chegou tão diferente
Do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente
Do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto
Quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto
Pra seu grande espanto convidou-a pra dançar
E então ela se fez bonita
Como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado
Cheirando a guardado de tanto esperar
Depois o dois deram-se os braços
Como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça
E começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança
Que a vizinhanca toda despertou
E foi tanta felicidade
Que toda cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz
Um dia ele chegou tão diferente
Do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente
Do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto
Quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto
Pra seu grande espanto convidou-a pra dançar
E então ela se fez bonita
Como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado
Cheirando a guardado de tanto esperar
Depois o dois deram-se os braços
Como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça
E começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança
Que a vizinhanca toda despertou
E foi tanta felicidade
Que toda cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Eco
terça-feira, 4 de novembro de 2008
O jovem Pastor e a Fadazinha, Máximo Gorki
“-Quando não te via, não havia tristeza em mim. Nesse tempo era livre. (…) Mas agora, depois que estás comigo, já não me é possível viver como desejaria, (…) porque partir sozinho seria causar-te um desgosto, e eu amo-te e tenho pena de ti. (…) E quando se ama e se tem pena, e se deseja ou teme qualquer coisa, então já se não é livre… (…)
- Dizes a verdade, eu também a direi. (…) Troquei tudo isso contra o quê? Diz-me. Não foi por esses minutos em que os beijos se tornam tão ardentes que chegam a arder? Se é esse o preço é pagar bem caro…E tudo o que soube de ti, seria melhor não o ter sabido. (…) Falaste-me do destino e da morte…Mas que há neles de bom? Se não soubesse que existiam, seria mais alegre, porque saber pensar não torna a vida melhor…Pronto, também eu te disse algumas palavras, e talvez te dissesse mais se pudesse arrancar o meu coração e levá-lo nas mãos até aos teus olhos: poderias ver o que há nele. És inteligente, diz-me então porque tudo isto evolucionou deste modo?
À primeira pergunta nem o pastor, nem a estepe, nem o céu que ele contemplava tristemente respondiam. Quanto à segunda, Maia e ele próprio já tinham respondido.
- Não há sábio que possa dizer porquê: esse sábio não existe, segundo penso. (…) Somos culpados um perante o outro? Não creio…Aperta-te então contra o meu peito, abraçar-te-ei e beijar- te-ei…
Maia olhou-o. Antes era belo, forte e audacioso (…) agora um pouco mais magro, pensativo.
Viveram assim e, olhando-se um ao outro, tornavam-se cada vez mais inúteis, aborreciam-se dia a dia mais e cada vez melhor compreendiam e viam o seu aborrecimento; e cada vez mais o pastor tinha vontade de partir para qualquer parte, longe, muito longe, onde não haveria nada que ele não soubesse ou de que não pudesse ter uma ideia; Maia definhava a olhos vistos, empalidecia cada vez mais e concentrava os seus pensamentos numa única interrogação constante: Porquê? Porquê?”
- Dizes a verdade, eu também a direi. (…) Troquei tudo isso contra o quê? Diz-me. Não foi por esses minutos em que os beijos se tornam tão ardentes que chegam a arder? Se é esse o preço é pagar bem caro…E tudo o que soube de ti, seria melhor não o ter sabido. (…) Falaste-me do destino e da morte…Mas que há neles de bom? Se não soubesse que existiam, seria mais alegre, porque saber pensar não torna a vida melhor…Pronto, também eu te disse algumas palavras, e talvez te dissesse mais se pudesse arrancar o meu coração e levá-lo nas mãos até aos teus olhos: poderias ver o que há nele. És inteligente, diz-me então porque tudo isto evolucionou deste modo?
À primeira pergunta nem o pastor, nem a estepe, nem o céu que ele contemplava tristemente respondiam. Quanto à segunda, Maia e ele próprio já tinham respondido.
- Não há sábio que possa dizer porquê: esse sábio não existe, segundo penso. (…) Somos culpados um perante o outro? Não creio…Aperta-te então contra o meu peito, abraçar-te-ei e beijar- te-ei…
Maia olhou-o. Antes era belo, forte e audacioso (…) agora um pouco mais magro, pensativo.
Viveram assim e, olhando-se um ao outro, tornavam-se cada vez mais inúteis, aborreciam-se dia a dia mais e cada vez melhor compreendiam e viam o seu aborrecimento; e cada vez mais o pastor tinha vontade de partir para qualquer parte, longe, muito longe, onde não haveria nada que ele não soubesse ou de que não pudesse ter uma ideia; Maia definhava a olhos vistos, empalidecia cada vez mais e concentrava os seus pensamentos numa única interrogação constante: Porquê? Porquê?”
domingo, 2 de novembro de 2008
Caro Pai natal:
Deito-me cedo e cedo ergo-me porque
dá saúde e faz crescer.
Faço desporto uma vez por semana
porque ajuda fisica e mentalmente.
Aturo a minha mãe, educo a minha irmã e não faço cabelos brancos ao meu pai,
porque eles são da família...
Trabalho e preparo o trabalho em casa com antecedência
para poupar tempo e surpresas.
Tenho paciência, sim, eu tenho muita paciência!
Tiro tempo para ver os amigos, mando postais de aniversário,
porque eles merecem.
Faço reciclagem, a pensar nos filhos dos outros.
dá saúde e faz crescer.
Faço desporto uma vez por semana
porque ajuda fisica e mentalmente.
Aturo a minha mãe, educo a minha irmã e não faço cabelos brancos ao meu pai,
porque eles são da família...
Trabalho e preparo o trabalho em casa com antecedência
para poupar tempo e surpresas.
Tenho paciência, sim, eu tenho muita paciência!
Tiro tempo para ver os amigos, mando postais de aniversário,
porque eles merecem.
Faço reciclagem, a pensar nos filhos dos outros.
sábado, 1 de novembro de 2008
domingo, 19 de outubro de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
"Mas não basta abrir a loja. É preciso fazer negócio e aí é que a porca torce o apêndice traseiro. Escrituremos primeiro a página Haver: a das delícias, a dos transportes terrestres, a boa página, enfim…
A senhora, aGora, parece-lhe bonita. Calculo que deve ter mais de sete e menos de cinquenta e quatro anos. Daí provém uma verba que escreveremos no alto da coluna: 100.000, por exemplo. O senhor está na convicção de ser o primeiro que a impressiona ilegitimamente e ela tratará de o instalar nesse convencimento. Seria inútil alguém lembrar-se que quase sempre antes do primeiro há um rés-do-chão e amiúde uma sobre-loja. Dali provém uma série de remorsos fingidos – e digo fingidos porque, quando elas se resolvem a essas coisas não é para se arrependerem senão bastante tempo depois – falsos pudores com a sua lágrima à mistura, protestos de amor e declarações peremptórias de que só o senhor a levaria a tais extremos, enfim, uma enfiada de pequeninas coisas que datam do tempo em que a Mãe Eva flirtava com os orangotangos do Paraíso e que o encherão de um júbilo, apanágio das inconsciências ingénuas e que trataremos de escriturar logo a seguir: 100.000 também."
***
sábado, 18 de outubro de 2008
SOF(c)ISMAS
Todas as mulheres são sensíveis.
A P. zangou-se.
Hoje estão todos aborrecidos.
A V. está irritável. A Segunda-feira é cruel.
Não quero ir para a escola!
Amanhã vai chover; o tempo muda.
Mas o sol ainda vai nascer, porque até agora tem nascido todos os dias.
E o sol também é para ti, sim, para ti! Porque quando o sol nasce é para todos!
A J. está a sonhar…o camelo é o navio do deserto…
Nenhum homem é santo.
Não existem Marcianos.
Vamos ao cinema?
V. está só…V. está só a divagar…
Certas experiências na vida não são agradáveis.
Mas nada é em vão (ou estarei enganada?).
Há pessoas felizes.
Há pessoas infelizes.
O J. A. não era feliz e, como todo o homem é mortal, ele escolheu a morte.
Nada é mais certo do que a morte.
Poucos chegam aos cem anos.
Por isso, a V. gosta de pessoas felizes.
A R. gosta dos beijos do S.
Há quem não goste de beijos?
A Lua é o farol dos amantes…
Mas deve haver alguém que ele prefere à V…
V. não é persistente.
Pensa: Mal me quer, bem me quer, muito, pouco ou nada…
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Profissão de risco: Blogger
“Enfermeiros, controladores aéreos, socorristas ou professores são profissões naturalmente conotadas com stress, mas as novas tendências de trabalho encarregam-se de criar outras, aparentemente menos agitadas, porém igualmente letais. Segundo o New York Times, cuidar de um blogue pode ser já uma ocupação de risco, causadora de enfartes em bloggers profissionais que se agarram ao computador até à exaustão, sem horas para iniciarem e terminarem o trabalho, 24 sobre 24 horas num sedentarismo quase total.” (NS, revista do Diário de Notícias)
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Se não sabes, vai à lista telefónica
À guas minerais
Alimentação vegetariana
Alimentos dietéticos
Análises clínicas
Agulhas e alfinetes.
Caixas especiais e de fantasia
Caixas de papel e papelão
Caixas de Previdência
Cofres
Caixas registadoras
Cobrança.
Cosméticos
Cortinas e sanefas
Criacção
Cirurgiões plásticos
Decoradores.
Ensino preparatório
Ensino secundário
Ensino superior
Escritórios
Enxovais
Túmulos.
Igrejas e entidades religiosas
Iluminação
Escapes.
Alimentação vegetariana
Alimentos dietéticos
Análises clínicas
Agulhas e alfinetes.
Caixas especiais e de fantasia
Caixas de papel e papelão
Caixas de Previdência
Cofres
Caixas registadoras
Cobrança.
Cosméticos
Cortinas e sanefas
Criacção
Cirurgiões plásticos
Decoradores.
Ensino preparatório
Ensino secundário
Ensino superior
Escritórios
Enxovais
Túmulos.
Igrejas e entidades religiosas
Iluminação
Escapes.
domingo, 5 de outubro de 2008
terça-feira, 30 de setembro de 2008
Poema dum Funcionário Cansado, António Ramos Rosa
"A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita
em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas
a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só."
domingo, 21 de setembro de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
"Ela, pela sua parte e segundo o senhor me acaba de dizer, é sofrivelmente bonita- dever primacial em qualquer mulher a que muitas faltam, creio eu, pelo único prazer de faltarem aos seus deveres - é razoavelmente inteligente, o que equivale a dizer que é razoavelmente estúpida, incontestável vantagem para quem o como o senhor não inventou a pólvora nem a faca de cortar manteiga no Verão, e, visto não ser livre, yem alguma coisa a perder além do tempo: a vergonha, isto no caso de a não ter perdido já." Apresenta além disso, duas enormes qualidades para o senhor: ser um fruto proibido e ser uma novidade. Esta última, sobretudo, é muito de levar em conta. Chegados que sejam ambos ao ponto dum entendimento, atingidas as portas do Terreal Paraíso dos gozos apreciáveis e concretos, e transpostas, enfim, essas portas com geral regozijo de V. Ex.as, se, nesse momento, o Sr. comparar as verbas Capital de ambos os sócios, sentir-se-á quase tentado a confesar a inferioridade do seu apport."
***
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
À beira-mar
Na praia onde moro
Nascem guarda-sóis na areia;
São, na sua maioria, amarelos,
E assemelham-se a um campo de girassóis,
Ma o meu olhar não é nítido como o de Alberto,
Porque não vejo o mar.
Na praia onde moro
A maré é tão alta
Que me rouba a figura desenhada
Na areia molhada,
Leva-me a vontade…
Na praia onde moro
Os velhos vivem nos bancos de madeira
E jogam às cartas, um jogo interminável.
Na praia onde moro
Não há “o acontecimento em cada esquina”
Da minha cidade,
Não há lugar para mim.
Na praia onde moro
Morro um bocadinho
À beira do mar,
Como se fosse um peixe
Fora de água.
Nascem guarda-sóis na areia;
São, na sua maioria, amarelos,
E assemelham-se a um campo de girassóis,
Ma o meu olhar não é nítido como o de Alberto,
Porque não vejo o mar.
Na praia onde moro
A maré é tão alta
Que me rouba a figura desenhada
Na areia molhada,
Leva-me a vontade…
Na praia onde moro
Os velhos vivem nos bancos de madeira
E jogam às cartas, um jogo interminável.
Na praia onde moro
Não há “o acontecimento em cada esquina”
Da minha cidade,
Não há lugar para mim.
Na praia onde moro
Morro um bocadinho
À beira do mar,
Como se fosse um peixe
Fora de água.
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
terça-feira, 19 de agosto de 2008
“O mundo dos sexos”, Henry Miller
“ Fiquei a olhar durante algum tempo para a cabra e para os amantes absortos, e depois fui até ao cais, onde um velho marinheiro idiota, de barba branca, estava sentado com os pés dentro de água. O seu olhar fixo num Argos distante era o de um homem que esperava avistar o velo de ouro.
Na sua solidão, no seu sonho de amor ou de ausência de amor, os que se perdem vão sempre ter à beira de água. Na imensa deriva da noite, o estertor da agonia dos aflitos é abafado pelo rumor da mais pequena ondulação. O espírito, vazio de tudo, excepto do rumor das ondas, serena. Rolando com as águas, a alma até então atormentada desdobra as asas.
As águas da terra! Que nivelam, sustentam, reconfortam! Águas baptismais! A seguir à luz, são elas o elemento mais misterioso da criação.
Tudo passa com o tempo. As águas ficam.”
terça-feira, 29 de julho de 2008
Um dia fujo para o Alentejo...
Era a primeira vez que viajavam de carro. Estavam com sorte quanto ao tempo, céu nublado! Faziam a viagem na maior hora de calor de um dia de Verão. Estava abafado e ameaçava chover. Seis horas era o previsto para a viagem.Ouviam música, falavam e às vezes ela lia-lhe contos em voz alta, até começar a enjoar.
Ela trazia a mão de fora da janela para sentir a densidade do ar. Passaram pelo Alentejo. Ela tinha o sonho simples de trabalhar para uma empresa, através do computador, e fixar-se num desses lugares. Nessa terra esquecida, nessa terra de ninguém. Seca, árida, deserta. Esquecer-se no deserto.
Pediu para ele parar, ele julgou que ela enjoara. Encostou. Ela abriu a porta do carro, descalçou as sandálias pelos calcanhares, começou a andar, descalça, por aquele campo de terra vazia, despiu o vestido pela cabeça, tirou a roupa interior e começou a correr, de braços abertos.
Nesse momento, principiou a chover, aquela chuva parca, mas de pingos grossos. Que cheiro a terra molhada! E os pés a enterrarem-se na humidade da Natureza...
Ele deslizara para o lugar do lado e cruzara os braços por cima do vidro da janela, apoiando o queixo. Observava-a. Gostaria de pertencer à terra, como ela, ser a terra como ela. Contemplou a figura, na fragilidade da sua nudez, que se tornava cada vez mais pequena. Teve medo de a perder para a linha do horizonte.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
Helena de Tróia
" -Ulisses! - diz Helena, abafando um grito.
- O próprio - responde o mendigo em voz baixa.
Várias recordações afluíram ao espírito da esposa de Páris...Ulisses, rei de Ítaca, o mais astucioso de todos os gregos...Há quanto tempo o não via? Fora um dos seus pretendentes, outrora, quando ela vivia na Grécia, na corte do Rei de Esparta. Nessa altura preferira Menelau, o seu primeiro marido...Como tudo isso já ia longe!
- Que vens cá fazer? - pergunta-lhe.
- Oferecer-te a libertação.
- A libertação?
- Não te finjas admirada. Todos sabem que Páris se aproveitou da ausência de Menelau para te raptar e te trazer aqui, fazendo-te passar por esposa.
- E quem te disse que não concordei?
- Responder com uma pergunta não demonstra grande certeza.
- E se te denunciasse?
- Sei que não o farás.
- Não me desafies, Ulisses. Se queres salvar a pele, vai-te daqui.
- Como queiras.
***
- Vais expulsar-me outra vez?
A sua clarividência não o enganara. Helena não só não revelou a sua presença, como aceitou, sem hesitar, ajudá-lo a roubar Paladion.
***
De repente, Helena deixou de pensar. Atingindo o cimo da cidadela, agitou a tocha combinada. Depois entregou-se à sorte e esperou os acontecimentos.
Eles precipitaram-se com estranha velocidade. Dentro das muralhas, Menelau só pensava em juntar-se àquela que o abandonara vergonhosamente.
-Ela morrerá - havia anunciado vezes sem conta durante a guerra. - Mas só a minha mão a deve ferir. Ai daquele que interferir na minha vigança! (...) Mal saltou a terra, Ulisses procurou Menelau com os olhos, descubriu-o a custo, assistiu ao fim do combate, que culminou na morte de Príamo, e precipitou-se para lhe tentar barrar o caminho.
- Um momento!- gritou.
- Para trás! - respondeu Menelau.
- Primeiro mete a espada na bainha.
- Não te metas nos meus assuntos.
- Mas estes assuntos dizem-me respeito. Tenta ao menos ouvir-me. Se conseguimos entrar na cidade foi graças a Helena. E tu bem o sabes! Se tivesse sido surpreendida em flagarante pelos Troianos, tê-la-iam lapidado. E nós, que lhe devemos a vitória, vamos tratá-la como uma traidora?
-Nessas palavras reconheço o astucioso Ulisses!
-Mas, então, que tens a responder-me?
- Que, ao assegurar o nosso triunfo, talvez se tenha penitenciado da falta cometida contra a Grécia...Mas nada, ouve bem, nada a não ser o seu sangue conseguirá lavar a vergonha com que me cobriu.
***
Parou na soleira da segunda sala. Helena esperava-o imóvel.
Vendo-o aparecer, não disse uma palavra. Baixou os olhos e logo a seguir voltou a erguê-los, esboçou um sorriso tímido mas de uma tal graça que perturbou o herói encolerizado e o fez deixar cair a espada que trazia nas mãos."
domingo, 27 de julho de 2008
Domingos escolhidos
" Em primeiro lugar, procedendo ao inventário de entrada, o meu amigo não ama a tal cavalheira. Não é impelido para ela por uma atracção irresistível do género daquela que levou Werther a matar-se por Carlota e certa Carlota, que eu conheci, a pôr no prego a máquina de costura a fim de comprar uma pistola de dois canos, que, afinal, seguiu o mesmo caminho da máquina. Também o não impulsiona aquela indomável sugestão física, a que muita gente chama Amor, confundindo, como diz Alphonse Karr, uma víscera com um músculo. A sua agitação não é desordenada, o seu desvairo não é grande. Se assim fosse, o senhor não viria consultar-me. A estas horas estaria bombardeando a tal senhora com o fogo cruzado de todas as suas batarias.
Ora muito bem. Voltando ao meu ponto de vista, começaremos por notar que, para a sociedade anónima que pretende estabelecer, o senhor entra com certo capital e a dama com outro. O senhor é novo, sem ser uma espanhola de tampa de caixa de fósforos merece até certo ponto a alcunha que lhe puseram, é educado, não é muito esperto, mas também não é absolutamente idiota, tem alguma coisa de seu, situação preferível a ter aquilo que é dos outros, diz possuir certa práctica da sociedade e deve ser ornado de mais algumas pequenas qualidades que a sua modéstia lhe não deixa enumerar. Isso representa capital apreciável.
*** continua***
sexta-feira, 25 de julho de 2008
William Shakespeare
"Depois de algum tempo aprendes a diferença, a subtil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E aprendes que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança.
E começas a aprender que beijos não são contratos e presentes, não são promessas.
Começas a aceitar as tuas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.
Aprendes a construir todas as estradas no hoje, porque o terreno de amanhã é incerto demais para planos.
E aprendes que não importa o quanto te importes, algumas pessoas simplesmente não se importam…
E aceitas, que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai ferir-te de vez em quando e precisas perdoá-la por isso.
Aprendes que falar pode aliviar dores emocionais. (…)
Descobres que se leva anos para se construir a confiança e apenas segundos para destruí-la, e que podes fazer coisas num instante de que te arrependerás para o resto da vida.
E o que importa não é o que tens na vida, mas quem tens na vida.
E que os bons amigos são a família que podemos escolher.
Aprendes que não tens que mudar de amigos se compreenderes que os amigos mudam, percebes que o teu melhor amigo e tu podem fazer qualquer coisa, ou nada, e ter momentos bons juntos.
Descobres que as pessoas com quem te importas são tomadas de ti muito depressa, por isso devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.
Aprendes que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas somos nós responsáveis por nós mesmos.
Começas a aprender que não te deves comparar aos outros, mas ao melhor que podes ser.
Aprendes que, ou te controlas nos actos ou eles te controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja a situação, sempre existem dois lados. (…)
Aprendes que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfren-tando as consequências.
Aprendes que paciência requer muita prática.
Aprendes que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e com o que aprendeste com elas do que com os aniversários que celebras-te.
Aprendes que nunca se deve dizer a uma criança que os sonhos não existem, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprendes que quando estás com raiva, tens o direito de estar com raiva, mas não tens o direito de seres cruel com ninguém.
Aprendes que com a mesma severidade com que julgas, tu serás condenado em algum momento.
Aprendes que não importa em quantos pedaços o teu coração foi partido, o mundo não pára para que o consertes.
E aprendes que realmente podes suportar…
que realmente és forte, e que podes ir muito mais longe quando pensas que não podes ir mais. (…)
As nossas dádivas são traidoras e fazem-nos perder o bem que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar…"
quarta-feira, 23 de julho de 2008
The Story, Brandie Carlile
All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you
I climbed across the mountain tops
Swam all across the ocean blue
I crossed all the lines and I broke all the rules
But baby I broke them all for you
Because even when I was flat broke
You made me feel like a million bucks
Yeah you do and I was made for you
You see the smile that's on my mouth
Is hiding the words that don't come out
And all of my friends who think that I'm blessed
They don't know my head is a mess
No, they don't know who I really am
And they don't know what I've been through like you do
And I was made for you...
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you
I climbed across the mountain tops
Swam all across the ocean blue
I crossed all the lines and I broke all the rules
But baby I broke them all for you
Because even when I was flat broke
You made me feel like a million bucks
Yeah you do and I was made for you
You see the smile that's on my mouth
Is hiding the words that don't come out
And all of my friends who think that I'm blessed
They don't know my head is a mess
No, they don't know who I really am
And they don't know what I've been through like you do
And I was made for you...
terça-feira, 22 de julho de 2008
quarta-feira, 16 de julho de 2008
terça-feira, 15 de julho de 2008
O amante de Lady Chatterley, D.H. Lawrence
" Escreveu a Connie no mesmo tom triste e melancólico de sempre, por vezes irónico e imbuído de um estranho afecto sem sexo. O seu afecto por ela não envolvia nenhuma expectativa, e a distância que mantinha continuava igual. Não havia lugar para expectativas ou esperança dentro dele. Odiava a esperança. "Une immense espérance a traversé la terre", era uma frase que tinha lido não sabia onde, e à qual acrescentou " e destruiu na sua passagem tudo o que valia a pena".
Connie nunca o percebeu muito bem, mas, à sua maneira, amou-o. Ela sentia sempre dentro de si a sua falta de esperança, e, sem esperança, não podia amar. Ele, pela mesma razão, jamais seria capaz de amar.
***
Ele não podia manter coisa nenhuma, era parte integrante da sua própria natureza ter de romper com todos os elos, e ficar liberto, isolado, abandonado. Esta era a sua maior necessidade, embora sempre tivesse dito: "Ela deixou-me".
***
Quando Connie subiu para o quarto, fez o que não fazia há muito tempo: despir-se completamente e ver-se nua no enorme espelho. Não sabia o que procurava, nem o que queria ver, não sabia; no entanto deslocou o candeeiro para, com a luz, se ver melhor.
E pensou uma vez mais o que já tinha pensado muitas vezes...como é frágil, sensível e patético, um corpo humano nu! Qualquer coisa de inacabado, de incompleto.
As pessoas diziam que tinha boa figura, mas, presentemente, estava fora de moda: era um corpo demasiado feminino, sem contornos de um adolescente. Não era muito alta, tinha um tipo escocês, baixo, com uma certa graça fugidia que podia ser beleza. A pele era levemente morena, os membros emanavam uma certa paz. O seu corpo devia ter possuído uma riqueza e uma plenitude, fugidias, mas faltava-lhe qualquer coisa: em vez de estar amadurecio nos seus contornos, estava a ficar mole e um pouco rígido, como se lhe faltasse sol e calor. Um pouco acinzentado, sem seiva!
Desiludido o corpo de mulher, pois não lograra tornar-se pueril, imaterial e transparente; em vez disso ficara opaco.
Tinha os seios pequenos, (...) mas também não amadurecidos, um pouco amargos, sem sentido. A barriga tinha perdido o brilho fresco e arrendondado (...)
O SEU CORPO ESTAVA A PERDER O SIGNIFICADO, A FICAR APAGADO E OPACO, UMA SUBSTÂNCIA INSIGNIFICANTE. (...) ESTAVA UMA VELHA, VELHA AOS VINTE E SETE ANOS, SEM BRILHO, SEM FULGOR CARNAL. VELHA POR ABANDONO E RECUSA. Sim, recusa.(...) Oh!, a vida do espírito!Nesse momento sentiu um ÓDIO SURDO por essa imensa FRAUDE! (...)
Vestiu a camisa de noite, foi para a cama, e começou a chorar amargamente. Da sua amargura nasceu uma indignação fria contra Clifford, os seus livros e tudo o que ele dizia; contra todos os homens como ele, que defraudavam a mulher até do seu próprio corpo.
***
E sentiu ao mesmo tempo, como jamais sentira, a agonia do seu abandono de fêmea, que começava a tornar-se insuportável.
***
É por tudo isto que não gosto de pensar muito em ti. Sinto-me torturado, e para ti não traz vantagem. Não gosto que estejas longe de mim. Mas se começo a atormentar-me fico pior. Paciência, o que é preciso é paciência. (...) Acredito num mistério superior que não permite que os coraçãoes se apaguem. (...)
E assim gosto da minha castidade neste momento, porque é como a paz que sobrevém ao amor.(...)
Bem, tantas palavras só porque não te posso tocar. Se pudesse dormir abraçado a ti, a tinta ficaria no tinteiro. Podemos ser castos estando juntos, como podemos sê-lo fazendo amor. Mas, por agora, temos de viver separados, e creio que é realmente o mais sensato. Oh, mas não tenho a certeza. (...) E neste momento não consigo sequer parar de te escrever. (...) É preciso vivermos isso e prepararmo-nos para o nosso encontro. John Thomas despede-se de Lady Jane, um pouco triste, mas cheio de esperança!"
segunda-feira, 14 de julho de 2008
CARPE DIEM
Abraça enquanto tens força nos braços,
beija enquanto os teus lábios são vermelhos,
vive enquanto estás vivo!
beija enquanto os teus lábios são vermelhos,
vive enquanto estás vivo!
domingo, 13 de julho de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS (cont.)
" - Meu jovem e louro amigo! A escrituração comercial, que à primeira vista parece uma ciência inexacta e inútil, é evidentemente prejudicial quando se aplica ao dinheiro de comanditários e acionistas. É, no entanto, de grande utilidade se dela nos servirmos para orientar as nossas questões do coração.
Se, em tudo quanto supomos ser esses gozos da vida atrás dos quais perpetuamente correm os nosso instintos e as nossas ilusões, tivessemos uma noção exacta do prazer que nos causam e do preço que nos custam, se abrissemos em qualquer dos nossos casos sentimentais uma conta corrente, registando na página Haver as venturas reais e fictícias que essas aventuras nos fornecem e na página Dever os variados esforços empregados para as conseguir, creia que a maior parte, logo ao fechar o primeiro balancete, teria à laia dos tendeiros infelizes, que chamar credores e/ ou abrir falência declarada ou tentar uma concordata amena. O livro Razão é indispensável em questões de amor e, no entanto, ninguém faz uso dele.
Tratemos, pois, de encarar comercialmente o seu caso, que é muito comezinho e toda a gente tem tido na vida."
***Continua***
quarta-feira, 9 de julho de 2008
DES(AMOR)
Cheguei. Ele, sentado no banco de pedra coma as mãos abertas sob um livro, lia e esperava. Quando me sentiu, levantou a cabeça e os olhos por cima dos óculos, franzindo a testa. Sorriu. Fechou imediatamente o livro com uma pancada seca, arrumou-o e levantou-se. Passou os braços à volta do meu corpo, cheirou-me o cabelo e beijou-me na boca.
Não, não foi nada assim!...Eu estava à espera dele, sentada no banco de pedra, com frio. Ele chegou, eu levantei-me e demos um beijo rápido. Pelo caminho falámos de Teatro, Literatura e Música, e, então, ele deu-me uma flor que trazia amarrotada dentro do bolso do casaco.
Não. Não foi nada disto!...Pelo caminho não falámos, havia uma barreira à prova de som entre nós, como um muro entre dois jardins. Fizemos o mesmo caminho de sempre, vimos as pessoas de sempre e agimos da mesma maneira de sempre.
Não. Estou a mentir. Na despedida ele disse: - Amo-te.
segunda-feira, 30 de junho de 2008
domingo, 29 de junho de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS, cont.
A seguir, o Compota de pêssego disse-me o seguinte:
- Sou o que é vulgar chamar-se um rapaz novo. Tenho o cabelo louro um tanto ondeado e os olhos azuis. Possuo alguma coisa de meu, não estou mal fornecido de roupa branca e de cor, andei em várias mestras e mestres até há dois anos e tenho um suficiente hábito da sociedade, que frequento com certa assiduidade. No que diz respeito a mulheres, fui conhecendo várias, gordas, magras e entremeadas e assim tem decorrido o meu tempo sem extravagâncias nem complicações de maior. Acabo, porém, de passar um mês numa praia e aí travei conhecimento com certa senhora razoavelmente bonita, razoavelmente inteligente, que pareceu interessar-se bastante por mim e estar disposta a interessar-se mais ainda. Dá-se, porém, a circunstância da senhora não ser livre e antes legitimamente ligada a certo sujeito que padece do bofe e tem cara de almoçar amiúde fígados de leão. Dada a minha inexperiência da vida, que não hesito em confessar, estimaria que o meu excelente amigo, para quem os atalhos da existência já não têm segredos, me respondesse sinceramente: - "Valerá a pena?"
O Compota de pêssego mirava-me com os seus olhos azuis. A fresca brisa que corria, brincava nas ondas do seu cabelo louro e eu mandei vir para mim um pipermint verde com água do Luso, uma pedra de gelo e uma palhinha.
Depois de ter reflectido um pedaço e chupado metade do meu refresco, respondi-lhe com o coração nas mãos:
*** Continua***
quarta-feira, 25 de junho de 2008
De saída!
Deixei de o ouvir e pedi a alguem que encostasse o ouvido ao meu peito.
Fiquei a saber que fez as malas e se foi embora.
segunda-feira, 23 de junho de 2008
domingo, 22 de junho de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS, Singularidades de um rapaz louro
" Começou por me dizer que se chamava Calixto, que tinha vinte e três anos e que o tratavam pela alcunha de Compota de pêssego.
O seu nome de baptismo aborrecia-o, porque, quando por ele o interpelavam nas casas de jogo, todos os batoteiros o fitavam com olhar rancoroso. Andava desconsolado com os seus vinte e três anos, pois lhe pareciam poucos para ser alguém na vida. Quanto à alcunha achava-a idiota e estimaria saber quem lha pusera para lhe assentar sem preparo um directo no céu da boca.
Expliquei-lhe que os cavalheiros que perdem dinheiro à batota, além de serem pouco astutos, ignoram totalmente o grego. Se assim não fosse, saberiam que, na língua falada por Sófocles, Eurípides, Aristófanes e outros sócios do núcleo de autores dramáticos da A. C. T. T. de Atenas, Calixto significa "o mais formoso" e nunca "sujeito que devia ir dar uma volta porque tem os pés frios". Em relação aos vinte e três anos, aconselhei-lhe que tivesse paciência, porque havia de passar-lhe. Eu também os tive, nada fiz para me curar, viajei um tanto ou quanto e, de repente, sem dar por isso, achei-me com trinta e dois e saudades por vezes do mal que nesta altura aflige o nosso amigo. Quanto à alcunha, contei-lhe que, nos meus tempos de cadete, me chamavam Perninhas de aranha. Isso não me impediu de ir com as tais pernas aracnídeas a sítios onde muitos não foram e de mandar outros na boa gâmbia a locais onde não tenciono ir.
***continua***
sábado, 21 de junho de 2008
UM, DOIS, TRÊS
Há um bom tempo comprei umas botas. Foi amor à primeira vista, assim que as experimentei, gostei de me ver com elas. Calcei-as e nunca mais as larguei, fizesse calor ou não.
Mas, um dia, apercebi-me que tinha uma pedra na bota esquerda. Não sei quanto tempo lá andou até eu dar por ela, nem sei quanto tempo mais andou depois de eu a descobrir.É que, para tirar a pedra, tinha de descalçar a bota, e eu não fazia isso nem para dormir.
No entanto, chegou o dia em que tive que a descalçar, pois o pé já sangrava e a dor, que começara pequenina, latejava impiedosamente.
O meu maior desgosto foi quando, depois de ter deitado fora a pedra, a bota nunca mais me serviu...
quinta-feira, 19 de junho de 2008
QUERO SER FELIZ OU TER RAZÃO?
"Nunca te justifiques.
Os amigos não precisam e os inimigos não acreditam."
quarta-feira, 18 de junho de 2008
TEMPOS DE IGNORÂNCIA
Ignoro porque continuo a lembrar-me de certas coisas e de outras não...
Lembro-me de chorar no primeiro dia de escola, mas já não me lembro do meu primeiro beijo. O sabor desse veio misturar-se com todos os seguintes, de maneira que apenas me lembro do último que dei.Rápido, querendo ser demorado...
Podia ter beijado mais, mas havia pressa, agora consigo recordá-lo, decompô-lo e senti-lo.
Daqui a pouco não me lembrarei mais.
terça-feira, 17 de junho de 2008
"O ALEPH", JORGE LUÍS BORGES
"Em Roma conversei com filósofos que pensavam que prolongar a vida do homem era prolongar a sua agonia e multiplicar o número das suas mortes."
segunda-feira, 16 de junho de 2008
SENTIDO PROIBIDO
Procuro um
sentido
para o que tenho
sentido
e o que
sinto
é um sentimento
sem sentido
para os outros
os outros
que não
sentem
como eu
o que sabem
os outros?
Não têm
o sexto sentido
que tem sido
conhecido
e conseguido
e que sem ti
não tem sentido
sentido
para o que tenho
sentido
e o que
sinto
é um sentimento
sem sentido
para os outros
os outros
que não
sentem
como eu
o que sabem
os outros?
Não têm
o sexto sentido
que tem sido
conhecido
e conseguido
e que sem ti
não tem sentido
sábado, 14 de junho de 2008
POEMA PARA SAFO
"Colhe o dia, e depois guarda-o todo na memória
porque tão pouco as flores colhidas fenecem no nada.
Espalham-se as pétalas a colorir o chão
ou leva-as consigo o vento de entre os dedos frouxos.
Também o solo e o vento transformam-nos os dias,
mesmos os nossos dias das dores de sol a sol,
memória a memória findos e mudados."
Epístola para um relógio de sol que tem a inscrição carpe diem, Fiama Brandão
sexta-feira, 13 de junho de 2008
QUAL É O FRUTO DO PECADO?
VAMPES E VADIAS, Camille Paglia
" O facto predominante da história sexual moderna não é o patriarcado, mas o colapso e desmembramento da velha família alargada, que deu lugar à família nuclear, unidade isolada que, na sua forma presente, é claustrofóbica e psicologicamente instável. A família nuclear só pode funcionar numa situação pioneira, quando o fisicamente àrduo trabalho agrícola mantém todos ocupados e exaustos da aurora ao anoitecer. A família nuclear de classe média, em que os pais são profissionais de colarinho branco que fazem um trabalho cerebral, fervilha de frustrações e tensões. Há sempre nas palavras uma carga de tensão, e a autoridade real está noutro lado, com os patrões no trabalho.(...)"
terça-feira, 10 de junho de 2008
O menino e o tempo
O Menino era bonito e bom e gostava muito da Mamã. Ela dizia sempre que o que mais queria era ter tempo!
Um dia, o Menino teve a ideia de comprar tempo para dar à Mamã. Foi à Loja do Mestre André e pediu um litro de tempo, mas o Mestre André disse que não tinha tempo para brincadeiras! O Menino achou que o senhor tinha sido muito mau, porque o tempo que ele queria também não era para brincadeiras, era para dar dar à Mamã!
Então o Menino pensou em ir ao Mini-mercado da Estrela, porque ela tinha muito mais coisas! Foi lá e pediu um kilo de tempo e a Sra. D. Estrela respondeu, carregada de riso, que ali não se vendia kilos de tempo. O Menino saiu e ficou muito chateado, porque afinal a Sra. D. Estrela não tinha assim tantas coisas como se dizia.
Então, o Menino encaminhou-se para o Supermercado Tem Tudo, porque lá havia muitas coisas que vinham de longe. Chegou lá e pediu um pacote de tempo e a Rapariga da Caixa disse, sem tirar os olhos do teclado, que o Menino tinha de ir para o fim da fila. O Menino ficou triste, porque a fila era muito grande e já estava a ficar escuro. Tinha de ir para casa jantar, senão a Mamã ia ficar preocupada, pois ele tinha andado todo o dia na rua!
Chegou a casa e a Mamã disse-lhe, muito contente, que tinha tido um dia muito bom, que tinha tido muito tempo!
O Menino chorou no quarto , por não ter sido ele a dar o tempo à Mamã.
Um dia, o Menino teve a ideia de comprar tempo para dar à Mamã. Foi à Loja do Mestre André e pediu um litro de tempo, mas o Mestre André disse que não tinha tempo para brincadeiras! O Menino achou que o senhor tinha sido muito mau, porque o tempo que ele queria também não era para brincadeiras, era para dar dar à Mamã!
Então o Menino pensou em ir ao Mini-mercado da Estrela, porque ela tinha muito mais coisas! Foi lá e pediu um kilo de tempo e a Sra. D. Estrela respondeu, carregada de riso, que ali não se vendia kilos de tempo. O Menino saiu e ficou muito chateado, porque afinal a Sra. D. Estrela não tinha assim tantas coisas como se dizia.
Então, o Menino encaminhou-se para o Supermercado Tem Tudo, porque lá havia muitas coisas que vinham de longe. Chegou lá e pediu um pacote de tempo e a Rapariga da Caixa disse, sem tirar os olhos do teclado, que o Menino tinha de ir para o fim da fila. O Menino ficou triste, porque a fila era muito grande e já estava a ficar escuro. Tinha de ir para casa jantar, senão a Mamã ia ficar preocupada, pois ele tinha andado todo o dia na rua!
Chegou a casa e a Mamã disse-lhe, muito contente, que tinha tido um dia muito bom, que tinha tido muito tempo!
O Menino chorou no quarto , por não ter sido ele a dar o tempo à Mamã.
domingo, 8 de junho de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
***
"Em 1919 morava eu em Paris, na Avenida Vítor Hugo, no segundo andar, por cima do célebre Potel e Chabot. Defronte havia a loja de monsieur Raoul, cabeleiriero de senhoras e cavalheiros. Em França, os merlans, como se diz em língua verde, só são conhecidas pelo seu primeiro nome, que arvoram pomposamente nas suas tabuletas. Era monsieur Raoul, quem tinha a honra de me cortar o cabelo. A sua loja era dividida por um tabique envidraçado. De um lado barbeava-se e tosquiava-se o sexo forte; do outro ondulava-se e oxigenava-se o sexo frágil. Certa tarde, eu dispusera-me a refrescar um pouco as minhas madeixas revoltas. Esperava tranquilamente o momento de ser " o senhor que se segue", - le premier de ces messieurs - e ouvia o patrão cavaquear com um cliente acerca da última corrida de Auteuil.
De súbito, a porta da rua abriu-se com estrondo. Monsieur Raoul acudiu ao chamado e achou-se na presença de uma senhora gorda, maquillée, de idade indefenida e voz acidulada, que queria ser ondulada imediatamente. Não era possivel, pois todos os gabinetes da secção feminina estavam ocupados. A senhora gorda indignou-se. Tinha marcado hora por telefone, chegava com um atraso de apenas quarenta e cinco minutos e, apesar disso, não podia ser servida. Monsieur Raoul desfazia-se em explicações e cada vez a senhora mais gritava, mais barafustava.
- C'est une indignité! - bradava ela.
Todas estas conversações tinham parado a até mesmo o ruído das tesouras. O dono da casa já não conseguia articular meia frase. A senhora, furibunda, ameaçava-o, não só de nunca mais pôr os pés naquele sale boîte, mas ainda em cima de falar a todas as amigas para que nunca sentissem a tentação de ali entrar.
Por fim, como Monsieur Raoul se limitasse a erguer para o céu desconsolados braços, a vieille dame deu costas , empurrou a porta envidraçada e abalou, rua fora, como um vendaval desencadeado.
O silêncio dos oficiaos e clientes aterrorizados era absoluto. Só eu me atrevi a ir junto de mestre Raoul, absolutamente esmagado pelo destino adverso e perguntar-lhe:
- Quem é esta senhora tão malcriada?
O pobre coiffeur olhou-me tristemente e explicou-me com cerimónia:
- É Madame Jeanne Hugo, a neta do grande poeta.
Foi então que compreendi o bem que tinham feito outrora em fechá-la no quarto escuro e o mal que o grande avô cometera levando-lhe marmelada às escondidas
sábado, 7 de junho de 2008
Um post para ostrasostrasloucas
E porque penso que estes meus posts de sábado se afastam do propósito do meu blogue sentimentaloidoliterário, aqui fica o "the last, but not the least", dedicado a estas amiguinhas:
Lista de clientes de uma Call girl
Ela: Boa noite, fala Ela Pimpinela! Em que posso ser útil?
Cliente: argh…rfff...pfff...blergh...
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Saturnino Francisco Orelhas Pirilito
Ela:--------------------------
Lista de clientes de uma Call girl
Ela: Boa noite, fala Ela Pimpinela! Em que posso ser útil?
Cliente: argh…rfff...pfff...blergh...
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Saturnino Francisco Orelhas Pirilito
Ela:--------------------------
quinta-feira, 5 de junho de 2008
Fragmentos
Lavo e perfumo os cabelos,
Que não são tocados por mão amorosa,
Teço lençóis de linho,
Onde não me deitarei com corpo alheio,
Cuido do corpo,
Que não gerará nenhum filho,
Cuido do espírito,
Que nunca se revelará.
Assim é minha existência,
Semelhante a pássaro,
A flor,
A pedra.
Que não são tocados por mão amorosa,
Teço lençóis de linho,
Onde não me deitarei com corpo alheio,
Cuido do corpo,
Que não gerará nenhum filho,
Cuido do espírito,
Que nunca se revelará.
Assim é minha existência,
Semelhante a pássaro,
A flor,
A pedra.
domingo, 1 de junho de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
Páginas vividas, André Brun
"Há na Arte de ser avô, de Vítor Hugo, um trecho que começa por este verso: Jeanne était au pain sec dans le cabinet noir...
Para aqueles que não tenham muito presente à memória esse poemeto do gigante do romantismo, eu resumo a história. Jeanne era, entre os netos, a preferida. Cometera uma das grossas maldades dos seus sete anos. Para castigo tinham-na fechado no quarto escuro, dando-lhe como única merenda uma fatia de pão seco. Mas o avô, às escondidas de toda a gente, foi levar à criminosa uma tartine com doce. Dali a pouco, soube-se tudo. A indignação foi geral. - É o senhor que estraga a crinça com mimo! - E como o velho avô baixasse uma orelha, contrita, acrescentaram: - Precisava também que o fechassem às escuras e lhe dessem pão seco todo o dia! - Então, Joaninha foi junto do avô e, trepando até lhe chegar ao ouvido, disse: - Deixa lá, avozinho! Quando estiveres de castigo eu te levarei pão com doce.
Quando eu tinha dez anos lia estes versos no colégio das irmãzinhas de S. Vicente de Paulo e sabia-os quase de cor. Também tinha um avô e também me fechavam às vezes num quarto sem janela.
***
Lista de clientes de uma Call girl
Ela: Boa noite, fala Ela Pimpinela! Em que posso ser útil?
Cliente: #$%&*+@£§}...........
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Manuel Pila da Mata!
Ela:--------------------------
Cliente: #$%&*+@£§}...........
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Manuel Pila da Mata!
Ela:--------------------------
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Sem resposta
Sofro,
E o meu coração é de pano verde,
estraçalhado,
E o meu Amor
tem os olhos tristes...
E o meu coração é de pano verde,
estraçalhado,
E o meu Amor
tem os olhos tristes...
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Vénus
Como pôde
aquela que
nascida das ondas,
transportada pelos Zéfiros até à terra,
e aí acolhida pelas Horas,
vestida de maiores finezas,
seus cabelos com flores entrançados,
conduzida para junto dos Imortais
e por Hefesto, Ares e Adónis disputada,
qual mais pura pomba ou mais bela rosa,
gerar, cego, um menino?
aquela que
nascida das ondas,
transportada pelos Zéfiros até à terra,
e aí acolhida pelas Horas,
vestida de maiores finezas,
seus cabelos com flores entrançados,
conduzida para junto dos Imortais
e por Hefesto, Ares e Adónis disputada,
qual mais pura pomba ou mais bela rosa,
gerar, cego, um menino?
segunda-feira, 26 de maio de 2008
Lista de clientes de uma Call girl
Ela: Boa noite, fala Ela Pimpinela! Em que posso ser útil?
Cliente: Blá blá blá…
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Ermelinda Estragadinho Perna Torta.
Ela:--------------------------
Cliente: Blá blá blá…
Ela: Eu estou a falar com?
Cliente: Ermelinda Estragadinho Perna Torta.
Ela:--------------------------
domingo, 25 de maio de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
CENA III
Os mesmos, a esposa e o calendário
A eposa : (entrando e vendo o falecido) - Serapião!Ex-pai dos meus filhos!...(cai de joelhos, soluçando).
O calendário: (descendo da parede, erguendo-a do chão e amparando-a) - Ânimo, minha senhora! De resto, a perda não é grande. Este homem era um espírito fraco e inferior. Outro fosse ele e, quando V. Exª no dia 25 lhe disse que só havia dinheiro para três dias, teria exclamado, com o sorriso nos lábios: "Calha bem!Este mês de Fevereiro só tem 28"...
FIM
sexta-feira, 23 de maio de 2008
Como havemos de estar!?
ELE: Olá, como estás?
ELA: (pensa, Como estou? hum… Digo a verdade ou a resposta do costume…A verdade, sempre a verdade!
A) Preocupada, a minha mãe tem dívidas para pagar.
B) Impotente, as minhas irmãs sofrem por amor.
C) Triste, não tenho tempo para as pessoas de quem gosto.
D) Desiludida, o meu trabalho não é o que eu esperava.
E) Amargurada, sinto-me distante do Amor.
F) Resposta standard :Beeeeem…
Escolhe a última resposta.)
Bem, estou bem. E tu?
ELE: Também!
O sol desce, dá lugar à lua. O escuro cai sobre Ela, como o pano no final de uma peça de teatro. Ela deseja que tudo se trate de um sonho.
ELA: (pensa, Como estou? hum… Digo a verdade ou a resposta do costume…A verdade, sempre a verdade!
A) Preocupada, a minha mãe tem dívidas para pagar.
B) Impotente, as minhas irmãs sofrem por amor.
C) Triste, não tenho tempo para as pessoas de quem gosto.
D) Desiludida, o meu trabalho não é o que eu esperava.
E) Amargurada, sinto-me distante do Amor.
F) Resposta standard :Beeeeem…
Escolhe a última resposta.)
Bem, estou bem. E tu?
ELE: Também!
O sol desce, dá lugar à lua. O escuro cai sobre Ela, como o pano no final de uma peça de teatro. Ela deseja que tudo se trate de um sonho.
quarta-feira, 21 de maio de 2008
"NÃO POSSO ADIAR O AMOR", Antonio ramos rosa
"Não posso adiar o amor para outro século
nao posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sol montanhas cinzentas
Não, não posso adiar este abraço
que e uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
nao posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Nao posso adiar o coração"
nao posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sol montanhas cinzentas
Não, não posso adiar este abraço
que e uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
nao posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Nao posso adiar o coração"
terça-feira, 20 de maio de 2008
Os fantasmas
Os fantasmas não são brancos,
São negros e engolem-nos na escuridão,
Os fantasmas não têm forma de homem,
São uma bola de ferro, agrilhoada ao nosso pé,
Os fantasmas não vêm do além,
Vivem dentro de nós,
Os fantasmas não assustam só à noite,
Estão sempre a meter medo.
Eu tenho medo dos fantasmas,
Eles não matam, mas atormentam.
São negros e engolem-nos na escuridão,
Os fantasmas não têm forma de homem,
São uma bola de ferro, agrilhoada ao nosso pé,
Os fantasmas não vêm do além,
Vivem dentro de nós,
Os fantasmas não assustam só à noite,
Estão sempre a meter medo.
Eu tenho medo dos fantasmas,
Eles não matam, mas atormentam.
domingo, 18 de maio de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
CENAII
O honrado chefe e os seus filhos
O primeiro filho: Ó pai, já não tenho botas...
O segundo: ó pai, vêem-se através das minhas calças rotas toda a espécie de panoramas pitorescos...
O terceiro: Ó pai, compra-me um monóculo...
O quarto: Ó pai, leva-me ao animatógrafo...
O quinto (que é uma filha): Papá, gostava de aprender piano, bordados, pirogravura e fox-trot...
O sexto (que já faz a barba): Papá, precisava de tomar alguma coisa para as escrófulas...
Os seis: Pai, Já que nos puseste neste mundo de enganos, satisfaz todos os caprichos das nossas imaginações adolescentes...
O honrado chefe: E mal sabem eles que não tenho com que os sustentar amanhã. (Quer levantar-se, mas as forças faltam-lhe) Meus filhos! Meus queridos...
Os seis: Que tem papá?
O honrado chefe (levando a mão ao coração): É o fim. Ides ficar muitíssimo orfãos.Dizei à vossa mãe estremosa, que morro de desgosto por não ter que lhes dar de comer. (Cambaleia e cai redondamente morto)
domingo, 11 de maio de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
TERCEIRO ACTO
Daí a dois dias. O cenário é o mesmo do primeiro acto. O Honrado chefe de Família está sentado no chão por ter vendido há muito a mobília a poco e pouco. Deixa cair a fronte pensativa nas mãos febris e descarnadas.
CENA I
O honrado chefe de Família e os seus botões
O Honrado chefe de Família: Adivinho que não poderei resistir a este desgosto. Sinto avizinhar-se a passos gigantescos a terrível comoção cerebral, que me vai libertar deste martírio. Acaba-se hoje o dinheiro cá em casa. É o terceiro dia. Nada nos resta que vender ou empenhar. Não tenho quem me valha nesta aflição. Sou incontestavelmente um cavalheiro muitíssimo encravado. Toda a minha vida fui um homem de bem, cumpri sempre os meus deveres, nunca abusei dos meus direitos e amanhã não terei que dar de trincar aos meus filhos. Se, ao menos, fosse pelicano, arrancaria do peito a carne que os alimentasse. Mas não...( Apalpando-se) Não há maneira de sacar desta minha plástica nem sequer meio bife do lombo. Só tenho a pele e o osso...( Cambaleando) É a primeira vertigem...É a morte que se aproxima...( Indo à porta) Meus filhos!...
Os botões: ( Uns para os outros) E quantos dramas semelhantes haverá por esta Lisboa!
quarta-feira, 7 de maio de 2008
domingo, 4 de maio de 2008
DOMINGOS ESCOLHIDOS
Segundo acto
No dia seguinte. A cena representa a esquina da Rua do Ouro e da Rua Luciano Cordeiro. Multidões de transeuntes e de carros eléctricos. O Honrado chefe de família procura ansiosamente com a vista e com o olfacto alguém conhecido.
CENA I
O Honrado chefe de família, vários desconhecidos, depois o Baptista
No dia seguinte. A cena representa a esquina da Rua do Ouro e da Rua Luciano Cordeiro. Multidões de transeuntes e de carros eléctricos. O Honrado chefe de família procura ansiosamente com a vista e com o olfacto alguém conhecido.
CENA I
O Honrado chefe de família, vários desconhecidos, depois o Baptista
Coro de desconhecidos: É singular e que quezília!
Propositado até parece...
Mas nenhum de nós conhece
Este Honrado chefe de família!
(Bailado)
Passam e tornam a passar enquanto o Honrado chefe de família se arrelia a olhos vistos.
O Honrado chefe e família:- E é isto!...Vossas Ex.ª ainda vão ver que sou capaz de estar aqui toda a tarde e não aparece um patife das minhas relações que me empreste o dinheiro necessário para alimentar a minha mulher, os meus filhos, o meu gato e o papagaio até ao final do mês. (Vendo de súbito ao longe o seu amigo mais íntimo e correndo para ele). Oh, Baptista! Caíste como sopa no mel. Não calculas a minha aflição e vais ser um salvador de um homem, duma mulher, de seis crianças e dois animais domésticos, dos quais um canóro e outro mamífero e felino. Emprestas-me cinquenta mil reis?
O Baptista: - Perdão! V. Ex.ª está laborando um grande equívoco. Honny soit qui mal y pense. Eu não sou quem você pensa...
O Honrado chefe: - O quê? Pois não és o Baptista, meu velho amigo de infância?
O Baptista: - (Que o é, mas não está disposto a andar com os cinquenta paus) Quem me dera! Não senhor...V. Ex.ª está confundido. Eu sou aquele a quem chamais vós outros Tormentório e justamente andava por aqui à procura de um camarad a quem pudesse extrair, sem clorofórmio, duzentos escudos que me são urgentes...
O Honrado chefe: - Nesse caso desculpe V. Exª. ( consigo mesmo) É curioso! Nunca vi duas criaturas mais parecidas.
O Baptista: - Efectivamentesou desde muito novo uma das pessoas mais parecidas que há em Lisboa. Já o meu pai era a mesma coisa. (afasta-se)
O Honrado chefe: - (Depois de cismar um largo instante) Sim...É isto mesmo...Não há outro remédio. O homem que rouba para dar de mastigar à sua descendência poderá ser um criminoso à face da lei; mas Deus, que vê tudo, perdoa-lhe, sorri e passa-lhe a mão pelo cabelo. (Sobe a plataforma de um eléctrico que vai à cunha e põe-se a apalpar o bolso do interior do casaco de um sujeito).
CENA II
O Honrado chefe de família e um sujeito amável
O sujeito: - É a minha carteira que procura?
O Honrado chefe: - Era...
O sujeito : - Sinto muito; mas furtaram-ma há bocado num carro do Rio de Janeiro. Também quem a levou não ganhou o dia. Tinha dentro três mil e quinhentos, quando muito...
O Honrado chefe: - (apeando-se) Ora bolas!...Experimentemos. Vou à batota ali de cima. Chego e faço uma parada de boca. Se ma aguentarem e saírem dois grandes, é a forma de poder dar de comer aos meus pequenos.
CENA III
O Honrado chefe e o porteiro da casa de jogo
O porteiro: - Que desja o cavalheiro?
O honrado chefe:- Jogar despreocupadamente dez mil reis ao grande no nobre jogo da chamada banca francesa.
O porteiro: - Isso também eu queria!
As batotas estão fechadas por uns dias. Tanto que vai haver três revoluções por causa disso...
O Honrado chefe: - Decididamente tudo se volta contra mim. Inferno e maldição!...
cai o pano
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