domingo, 27 de abril de 2008

Domingos escolhidos

Cena II
O honrado chefe de família e a esposa extremosa
A esposa extremosa: - Serapião!Não tenho dinheiro senão para mais três dias...
O honrado chefe de família: - O quê? Que me dizes, Belisária?
A esposa extremosa: - Tenho feito toda a espécie de economias. Dos nossos seis filhos, três comem um dia sim, os outros três esse dia não e assim sucessivamente. Vou todos os dias aqui da nossa casa em Santa Marta - a tal que há-de morrer farta - a uma tenda no Caminho de Ferro, só porque lá vendem a banha de porco dois tostões mais barata em cada arroba. Regateio, choro, arranco o cabelo! (Mostra a cabeça completamente careca) Pois, apesar disso, hoje de manhã verifiquei que não me chega o dinheiro senão para três dias.
O honrado chefe de família: - Três dias?Quantos são hoje?
O calendário: - Vinte e cinco.
O honrado chefe de família: - É horrível! Com licença, ó Belisária! (Arranca com desespero seis cabelos que a esposa extremosa ainda tinha no alto da cabeça).
O botão de madrepérola: - Olha que esses cabelos não são teus...
O honrado chefe de família:(Baixo) - Bem sei. Por isso mesmo é que os arranco tão febrilmente...
O botão de osso do colarinho: (Ao de madrepérola) -Não te metas em questões de família. ( o botão do peitilho sai pelas ceroulas abaixo).
O honrado chefe de família: - Que situação! Que havemos de fazer? O tendeiro já não fia?
A extremosa esposa: - Isso sim. Vendeu a roca para comprar acções duma fábrica de tecidos a vapor.
O honrado chefe de família: - Tens ainda algum colar de pérolas para pôr no prego?
A extremosa esposa: (Procurando nos bolsos do avental) - Não tenho, não. Dei o último por uma dúzia de carapaus.
O honrado chefe de família: - Com licença, ó Belisária! (Quer arrancar-lhe mais alguns cabelos, mas nota com desgosto que os seis cabelos de há pouco eram os últimos que a pobre senhora tinha).
A extremosa esposa: - Olha, Serapião! Se queres dar mostras da mais viva agitação, arranca-me estes pêlos do buço. (Mostra o bigode à americana).
O honrado chefe de família: - Não. Já agora arranco o meus cabelinhos do nariz. Não me servem para nada. (E fá-lo).
Cai o pano
***

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Eva

Não tive infância...
Nasci logo e apenas mulher.
No entanto, também me sinto saciada quando como e também choro quando sinto mal - estar assim como um pequeno bebé.
Não sei se está certo ou errado, apenas não penso muito nisso.
Afinal eu fui criada com animais...

domingo, 20 de abril de 2008

Domingos escolhidos

Um drama impressionante ( André Brun )



Primeiro acto



A cena representa principalmente um calendário de parede onde se lê em letras gordas: Fevereiro.25.Domingo. Ao subir o pano o Honrado Chefe de Família passeia agitadamente com as mãos atrás das costas. Conversa com os seus botões, que são de vários tamanhos e diversas substâncias.



Cena I



O Honrado Chefe de Família e os seus botões: - Isto é horrível!Não sei onde iremos parar...
O botão do colete: - É verdade!

O Honrado Chefe de Família: - Acabo de ler nos jornais que quem queira embarcar para o Brasil, em primeira classe, tem de pagar um novo imposto de quinhentos escudos por caveira. Que hei-de eu fazer à minha vida?

O botão das calças: - Pois ism, mas como tu não tencionas ir ao Brasil...
O Honrado Chefe: - É verdade! Tens razão. Não tenho nada com isso...Mas a electricidade, que vai custar o dobro?!
O botão dos suspensórios: - Não acendas a luz. Deita-te ao lusco-fusco, com as galinhas...
O Honrado Chefe de Família:- Como me hei-de eu deitar com as galinhas, se por um frango do tamanho de um canário pediram ontem à minha Esposa estremosa nada menos que sete escudos?
O botão do casaco velho:- Então deita-te às Ave-Marias, com a tua Esposa estremosa...
O Honrado Chefe de Família: - É uma boa ideia! Não há nada como conversar com os seus botões. (de súbito) E o resto? O macarronete que aumentou este mês dois escudos em grama, o chouriço que está a cinquenta mil reis o metro, a carne de vaca que atingiu em quilo o preço do boi em tamanho natural, a água que já está a sessenta centavos, o leite, os ovos cuja mão de obra cada dia cresce?...

***

sábado, 19 de abril de 2008

Singularidades de um fim de namoro

Ele: - Toma, é teu!
Ela: - O que é?
Ele: - O teu coração.
Ela: - Mas, já não o queres?!
Ele: - Não.
Ela: - Porquê?!Antes cuidavas dele como se fosse teu...E eu...já não sei o que fazer dele...
Ele: - Pois, mas eu agora tenho de tratar do meu umbigo!Adeus.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

in "As almas do Purgatório"

"Não custa ser valente, quando se perdeu tudo."

Prosper Merimée

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Adão e Eva


E Deus criou a Mulher, à imagem do Homem.
Adão, desinteressado, continuou a dar os nomes aos animais. Continuou a fascinar-se com os seios fartos das vacas e com as vaginas profundas das fêmeas dos elefantes, ignorando a "sua".
Eva, desprezada, foi tentada pela serpente e deixou-se enroscar e penetrar por aquele vibrador carnal.
No dia seguinte, Adão foi expulso do Paraíso e Eva seguiu-o, no desejo de ainda conseguir o seu pénis viril.

quarta-feira, 16 de abril de 2008


Excertos do diário de Adão e Eva

“Quem me dera poder fazê-lo entender que um coração cheio de amor é um tesouro, é tesouro que baste e que sem ele o intelecto é uma pobreza. (…) Porque o amo, então? Acho que é unicamente porque ele é masculino. No fundo ele é bom, e eu amo-o por isso, mas poderia amá-lo mesmo que ele não fosse. Caso ele me batesse ou abusasse de mim, mesmo assim ainda continuaria a amá-lo. (…) Ele é forte e bonito e amo-o por isso e admiro-o e tenho orgulho nele. Mas também poderia amá-lo se não tivesse essas qualidades. Se ele fosse dor, eu amá-lo-ia. Se ele fosse um destroço, eu amá-lo-ia. E trabalharia para ele e seria sua escrava e rezaria por ele e velaria à sua cabeceira até à hora da minha morte. Sim, creio que o amo simplesmente porque ele é meu e é masculino. (…) A vida sem ele, não seria vida, ora como poderia aguentá-la? Esta prece também é imortal e não deixará de ser dita e pensada enquanto a minha espécie subsistir. Eu sou a primeira esposa e na última esposa estará a minha réplica.”

terça-feira, 8 de abril de 2008

Palladas

" A mulher é amarga como o fel; mas tem duas boas horas,
a da cama e a da morte."

in Carmen de Prosper Merimée

domingo, 6 de abril de 2008

"A história de um galante"

"Sempre pensei que é uma injustiça para a mulher não ter estado nunca sozinha no mundo. Adão pôde, por um tempo, muito ou pouco, caminhar sobre uma terra jovem e serena, entre os animais, na posse inteira da sua alma, e a maioria dos homens nasce ainda com a memória desse tempo. Mas a pobre Eva, essa, já o encontrou a ele, reclamando-a para si, no momento em que abriu os olhos para o mundo. E isto nunca perdoou a mulher ao Criador: ela sente-se com o direito a reaver para si própria esse tempo no Paraíso. Só que, para sua pouca sorte, ao perseguir-se um tempo já passado, sempre o apanhamos de raspão e pelo avesso."

in Sete contos góticos de Karen Blixen

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Poema perdido

A lua apareceu no escuro do céu,
qual olho de tigre espreitando pelo buraco da fechadura.
O Poeta escreveu as seguintes palavras:
"A lua que vês é a mesma que a minha,
por isso tocamo-nos com o olhar;
beijo-a para que te beije a ti. "
Nessa noite a Menina adormeceu à janela, de olhos abertos.

quinta-feira, 3 de abril de 2008


Eva expulsa do Paraíso II (recuperada)

Olho-me ao espelho, com a mesma curiosidade com que outrora olhava a imagem reflectida na água.
Continuo a ver em mim todas as mulheres do mundo.
Continuo a desejar, ingenuamente, ir nua para a rua.
Mas quando o faço, continuo a arrepender-me vergonhosamente,
de não ter levado sequer um chapéu.
Tenho saudades do Paraíso!
Oh!Longínquos e indizíveis dias...

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Ana Karenina

(...)
"Surpreende-me que os pais consintam. Ao que se diz, é um casamento de amor.
- De amor! - exclamou a embaixatriz. - Onde foram arranjar ideias tão antediluvianas?Quem fala de paixão nos nossos dias?
- Que quer, minha senhora - disse Vronski -, essa velha moda, tão ridícula, continua a não querer ceder o lugar.
- Tanto pior para os que a mantêm! Em matéria de casamentos felizes, só conheço os casamentos de conveniência.
- Seja! Mas não acontece, muitas vezes, que esses casamentos caem desfeitos em pó à aparição dessa paixão que era tratada como intrusa?
- Dê-me licença: por casamento de conveniência, entendo aquele que se faz quando de ambas as partes se passou já pelas loucuras da juventude. O amor é como a escarlatina, é preciso apanhá-lo.
- Nesse caso, devia-se arranjar um processo de o inocular, como as bexigas.
- Durante a minha juventude, estive apaixonada por um sacristão - declarou a princesa Miagki. - Gostava bem de saber se o remédio operou.
- Pondo de parte brincadeiras - disse Betsy - , creio que para conhecer o amor é preciso, primeiro enganar-se, depois reparar o erro.
- Mesmo depois do casamento? - perguntou, rindo, a embaixatriz.
- Nunca é tarde para o arrependimento - disse o diplomata, citando um provérbio inglês.
- Exactamente - aprovou Betsy. - Cometer um erro, repará-lo depois, eis o que importa. Que pensa disto, minha querida? - perguntou a Ana , que escutava a conversa sem falar, com um meio sorriso nos lábios.
- Creio - respondeu Ana, brincando com a luva - que, se há tantas opiniões quantas cabeças, há também tantas maneiras de amar quantos os corações.
(...)
Durante toda essa Primavera, não foi ele próprio e conheceu minutos trágicos.
"Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui posto no mundo", dizia consigo. "E uma vez que não posso alcançar esse conhecimento, torna-se-me impossivel viver."
"No infinito do tempo, da matéria, do espaço, uma bolha-organismo se forma, se mantém um momento, depois rebenta...Essa bolha sou eu!"
Este sofisma doloroso era o único, o supremo resultado do raciocínio humano durante séculos; era a crença final que se encontrava na base de quase todos os ramos da actividade científica; era a convicção reinante, e, sem dúvida porque lhe parecia ser a mais clara, Levine penetrara-se involuntariamente dela. Mas esta conclusão parecia-lhe mais que um sofisma; via nela a obra cruelmente irrisória de uma força inimiga a que importava subtrair-se. O meio de libertar-se estava ao alcance de cada um...E a tentação do suicídio perseguiu tão frequentemente este homem saudável, este feliz pai de família, que ele afastava das suas mãos todas as cordas e não se atrevia a sair com a espingarda.
No entanto, em vez de queimar os miolos, continuou simplesmente a viver.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Eva (recuperada)

Nasci no sítio onde as horas nunca param
e onde não se querem saber os porquês.
Conheci Adão.
No princípio, havia uma só língua,
descemos rio abaixo e descansámos no areal a ver o pôr-do-sol,
e depois escureceu e não nos concederam o poder de dar o nome às coisas.
Havia palavras mágicas que nunca foram pronunciadas......