Entrou no corredor e sentiu o mesmo arrepio gelado de sempre. Quer fosse Inverno ou Verão, o mesmo sentimento nauseabundo parecia congelar-lhe os ossos.
Ano após ano, de manhã à noite, tardes intermináveis percorria os corredores velhos e húmidos, as tábuas rangendo debaixo dos saltos altos, faziam um barulho incomodativo para os outros mas, para ela, era tão familiar, quase que surdo.
Caminha lentamente, arrastando-se até à sala de reuniões. Entra e vagueia com o olhar a minúscula e desconfortável sala. Ninguém para beber café, como seria de esperar. Encosta-se ao balcão, pega na chávena "liliputiana" com os seus dedos gordos e sopra insistentemente para o conteúdo líquido.
De repente, atrás do balcão, alguém suspira e ela suspira também, para dentro de si, sem ninguém ouvir. Começa mais um dia de tortura, mas sente-se resignada.
A mesma figura austera e de olhar penetrante fixa-lhe o rosto, capta-lhe a expressão e, por momentos, é como se com os seus olhos entrasse no cérebro dela e lhe apanhasse todos os pensamentos. Isso incomoda-a, sempre a incomodara. Mas agora era diferente. Nos seus 20 anos de serviço, aqueles olhos tornaram-se parte da sua vida. Tratava-se apenas de um quadro, o retrato do antigo Reitor, que ela nem chegara a conhecer. Nos primeiros tempos ficara atrapalhada, porque por mais que fugisse, por mais que mudasse de ângulo, os olhos, como se mexessem, perseguiam-na e acabavam por encontra-la, e às vezes encontravam-na dentro de si própria.
Acabou o café, rodou desajeitadamente sobre os pesados calcanhares e arrastou-se novamente pelo soalho de madeira até à sala de aula.
Sentiu o mesmo aperto de barriga, mas desta vez com menos intensidade. Tudo isto se tornara tão monótono! Entrou na sala, eles já lá estavam. Uns em pé, outros sentados em cima das mesas. Conversavam sonoramente, riam às gargalhadas e ela teve medo que fosse dela.
Quando subiu o estrado, este rangeu, abalado pelo "peso morto"e, só assim, eles deram conta que a "Miss Baleia" tinha chegado. Tinham sido avisados pela Reitoria para se comportarem, visto a debilitada senhora se encontrar em período depressivo, causado sabe-se lá porquê!... As senhoras na casa dos quarentas tinham sempre daqueles cheliques!
Tentaram acalmar-se, sentaram-se nos lugares e cochichavam só com o colega do lado. Ela, de costas para eles, começou a escrever no quadro, ouvindo os seus segredinhos e risinhos, que a faziam suar, e sentir como se estivesse prestes a ter uma quebra de tensão.
Eles gozavam com ela, riam-se dela. Do cabelo dela, da gordura dela, das roupas, dos sapatos, dos óculos…E ela estava farta! Olhou pela janela, estavam no terceiro andar de um dos velhos blocos. Havia uma janela com o vidro rachado, e o vento às vezes assobiava por ali. Mas, ela continuava a ouvi-los. Sorrateiramente, pegou na fina vara, com que costumava apontar no mapa, levantou o braço e, virando-se de repente, atirou o objecto pontiagudo para o fundo da sala, que perfurou a pupila de um dos inimigos.
Na sala ecoou o som de pele a rasgar e o grito do alvo, o resto continuou em silêncio. Todos os olhos alastrados pelas caras, e todas as bocas abertas num esgar de horror. A cara dele escorria sangue e os outros continuavam quietos.
Ela arrumou a sua pasta, passou as mãos pelo fato largo e engomado, virou as costas e saiu, fechando a porta atrás de si.
Chegou a casa, finalmente, pôs a água da banheira a correr, quente até encher.
Enfiou-se nela e apreciou cada minutinho de prazer. Vestiu um dos seus melhores fatos, penteou e secou o cabelo. Olhou-se ao espelho. O cabelo fiou demasiado "armado", fazia-a parecer mais gorda!
Pegou no livro que estava a ler, sentou-se na cadeira e esperou que a viessem buscar.