“No dia em que a mãe saiu de casa (…) houve um ciclone que derrubou a vida de todos.
É o Inferno, imaginou Laura.( …)Mas, aquela manhã chegara embrulhada em negror, (…) e o jogo do faz de conta da menina acabou por se transfigurar numa espécie de ficção assustadora.
“Mais valia que ela tivesse morrido”, desejara malévola, vingativa, (…). “Isso não se diz da própria mãe”, repreendeu-a a avó. (…)
E no entanto, era como se continuasse na sua obsessiva vigia voyeurista, pela porta entreaberta do quarto onde ela se arranjava, agitada (…). “Como uma garça”, lembrava-se de ter pensado.
E ela escutou esse medo, o peitinho ferido por uma dor revolvida e absurda, os lábios secos, descorados e mordidos pela lâmina dos dentes. Imóvel, como se um sortilégio a prendesse e em simultâneo a invadisse pela devassa de menina culpabilizada, desamada e esquecida por falta de merecimento. Ou de culpa merecida.
Tal como se sentira na obscuridade do corredor, a espreitar pela fresta da porta, a mãe que fazia as malas (…)
“Mais valia que ela tivesse morrido!”, pensou, quando ela entrou no carro e partiu, sem sequer acenar a despedir-se. “Mais valia que ela tivesse morrido!”, teimou com afinco, sabendo quanto esse desejo lhe era interdito, mas não se arrependendo dele.
“Mais valia que ela tivesse morrido!”, pensara, consciente da heresia, do desaforo, mas igualmente da chaga aberta no sentimento, num encantamento que já não queria para si. Um dia ouvira dizer que “mãe é mãe, mesmo se for uma silva”…Mas ela recusava a silva, o silvo, a urtiga, o espinho. Na verdade, mais do que o tornado, Laura temia o espinho, pois não havia salvação se o espinho ficasse cravado na alma, sem antídoto para o veneno daninho. Recuando diante dos picos aguçados dos cactos, ou dos picos afiados das rocas das histórias das fadas más e madrastas desalmadas, a quem nenhuma menina escapava. Rasura a intrometer-se na felicidade que o abandono destrói sem piedade de nenhuma espécie. Desconhecendo qualquer frescor capaz de atenuar a mágoa que a secura afiava, numa solidão sem apaziguamento.
“Mais valia que ela tivesse morrido” (…)e ela por ali ficava quanto podia, como se apesar de tudo esperasse um milagre no qual nunca acreditara, porque ao deixar de crer, passara a dedicar-se com empenho a disfarçar a pequena assassina que nela tomara o seu lugar.
“A tua mãe é maluca!”, irão dizer-lhe mais tarde, mas ela nunca entendia se as pessoas achavam que a sua mãe era louca ou a acusavam de leviana ou adúltera. (…)
O pai, (…) exasperado de nela reconhecer os traços da mulher que o abandonara. “Sai daqui menina, que me fazes lembrar a tua mãe!”, repeli-la-á mais tarde, ao vê-la aproximar-se em busca de carinho, como os animais.”
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