terça-feira, 30 de setembro de 2008

Poema dum Funcionário Cansado, António Ramos Rosa

"A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita
em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas
a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só."

domingo, 21 de setembro de 2008

DOMINGOS ESCOLHIDOS

"Ela, pela sua parte e segundo o senhor me acaba de dizer, é sofrivelmente bonita- dever primacial em qualquer mulher a que muitas faltam, creio eu, pelo único prazer de faltarem aos seus deveres - é razoavelmente inteligente, o que equivale a dizer que é razoavelmente estúpida, incontestável vantagem para quem o como o senhor não inventou a pólvora nem a faca de cortar manteiga no Verão, e, visto não ser livre, yem alguma coisa a perder além do tempo: a vergonha, isto no caso de a não ter perdido já." Apresenta além disso, duas enormes qualidades para o senhor: ser um fruto proibido e ser uma novidade. Esta última, sobretudo, é muito de levar em conta. Chegados que sejam ambos ao ponto dum entendimento, atingidas as portas do Terreal Paraíso dos gozos apreciáveis e concretos, e transpostas, enfim, essas portas com geral regozijo de V. Ex.as, se, nesse momento, o Sr. comparar as verbas Capital de ambos os sócios, sentir-se-á quase tentado a confesar a inferioridade do seu apport."
***

segunda-feira, 8 de setembro de 2008


À beira-mar

Na praia onde moro
Nascem guarda-sóis na areia;
São, na sua maioria, amarelos,
E assemelham-se a um campo de girassóis,
Ma o meu olhar não é nítido como o de Alberto,
Porque não vejo o mar.

Na praia onde moro
A maré é tão alta
Que me rouba a figura desenhada
Na areia molhada,
Leva-me a vontade…

Na praia onde moro
Os velhos vivem nos bancos de madeira
E jogam às cartas, um jogo interminável.

Na praia onde moro
Não há “o acontecimento em cada esquina”
Da minha cidade,
Não há lugar para mim.

Na praia onde moro
Morro um bocadinho
À beira do mar,
Como se fosse um peixe
Fora de água.